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Uma dança entre a Arte e a Dor

Em meio ao julgamento de seus assassinos, Marielle inspira obra de arte em exposição no Rio

Foto: Acervo

Observatório da Branquitude

1 de novembro de 2024

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Por Manuela Thamani*

Tenho um livrinho na minha escrivaninha que consulto eventualmente. O ‘Lost in Translation’ é uma viagem linguística por palavras que desafiam as fronteiras da tradução, isto é, são intraduzíveis. Por exemplo, em urdu, a palavra Goya significa se deixar levar pela imaginação, até sentir algo fictício como se fosse real.

Esta semana, enquanto lia este livro, me vi pensando na elasticidade na ideia de arte: seria a palavra ‘arte’ intraduzível em alguma língua? A arte, com sua capacidade de transcender as palavras, é capaz de evocar emoções profundas em cada indivíduo.

A arte, para mim, em momentos turbulentos, é como um óleo essencial de laranja: revigorante e capaz de trazer um novo frescor à vida.

A tela em branco, a folha em branco, o palco vazio, são convites para exercer Goya, para que nossa imaginação flua livre, construindo universos paralelos onde a dor pode ser transmutada em beleza, e a angústia em poesia. Em tempos de tormenta, penso na arte como uma dança, um pas de deux, entre o sofrimento e a criação, um movimento ambivalente que nos mantém conectados à nossa humanidade.

A dor marca nossas vidas de forma profunda. A perda de Marielle Franco, que dedicou sua vida à luta por justiça social, é uma ferida que ainda sangra em muitos de nós. O julgamento de seu caso e de Anderson Gomes traz um misto de alívio e apreensão. Alívio por haver, finalmente, a possibilidade de que a verdade completa venha à tona e que os responsáveis sofram as devidas consequências da atrocidade cometida. Apreensão porque a dor da perda não se apaga com o passar do tempo, e a justiça, por mais que seja necessária, não alivia a ausência.

Em meio a essa mixórdia emocional, a arte se revela um possível refúgio. A obra ‘Marielle Franco Yaure Iomane’, de Denis Moreira, uma impressionante impressão lenticular, me tocou profundamente. Estive na exposição Constituinte do Brasil Possível, no Rio de Janeiro, e foi um presente. A obra de Moreira, em particular, nos proporciona um momento de reflexão, fortalecendo nossas subjetividades. É um testemunho da beleza que brota mesmo em meio à dor.

A exposição convida o público a visualizar imaginários sociais e políticos de um Brasil Possível. Comenta a curadora da exposição Ana Flávia Magalhães: “Estamos diante de fabulações de um Brasil verdadeiramente possível à luz da nossa capacidade coletiva de frustrar projetos de destruição. A exposição evoca um estado de existência que confronta a violência que insiste em nos definir como ‘objetos’ ou ‘quase cidadãos’ que nos permite reafirmar atos e desejos de liberdade de pessoas negras ao longo do tempo. Criamos, assim, um 14 de Maio de 1888 [um dia após a abolição da escravatura] permanente, como um acerto de contas com as promessas que nem chegaram a ser integralmente feitas durante momentos emblemáticos como a Independência e a Abolição”.

Ao caminhar pelos corredores da mostra, deparei-me com a obra de Fênix Valentim, um menino negro de apenas 11 anos que, com sua aquarela vibrante e inventiva, nos convida a percorrer por uma festa na qual Xangô rege a dança, e bailam com ele Marielle Franco, Machado de Assis entre outras figuras históricas. Nesta festa jubilosa, onde todos nós, pessoas negras, sonhamos em estar, o machado de Xangô está no chão, pois a justiça foi feita. 

A arte de Fênix me fez lembrar que a esperança é um ato de resistência, um grito de que a vida continua, mesmo diante das adversidades. A arte de Fênix, assim como a de tantos outros artistas, nos mostra que a criação também é um ato político, uma forma de transformar o mundo.

A cada nova obra, a cada nova criação, e, alargando um pouco mais, ouso a dizer que a cada nova pesquisa do Observatório da Branquitude, temos a oportunidade de reimaginar o mundo, de construir um futuro menos desigual.

A arte de Fênix, de Denis, e de todos os artistas da exposição, nos mostram que a esperança e as fabulações são atos de resistência, mesmo diante das adversidades. Que a arte nos inspire a seguir lutando por um futuro melhor.

* Manuela Thamani é co-diretora executiva do Observatório da Branquitude

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